Sei que lembro...
António Abade da Luz
Lá estávamos nós mais uma vez reunidos a volta da mãe para
escutar com muita atenção os contos do mundo imaginário, de
importante significado na vida de uma criança que começava a ter os
primeiros contatos com o mundo.
O primeiro contacto que tive com o escrito oral, foi através da
minha, sendo solteira, mãe de seis filhos, frutos de relacionamentos
fracassados em virtude de querer ser sempre uma boa mãe e proteger
os filhos dos maus tratos.
No ambiente descrito não está presente o meu primeiro irmão,
porque vivia com a sua avó, e o mais novo ainda não tinha nascido.
A que está em cima da cama é a minha penúltima irmã. A mãe não
sabe ler nem escrever, mas todas as noites em que o jantar atrasava,
ela sentava na cama e nós sentados no chão na sua frente, começava
a contar-nos histórias engraçadas e fantásticas que nos faziam
sentir bem ao mesmo tempo que nos dava arrepios e sensações de
medo, por causa de alguns personagens monstruosas evidenciados ao
longo do conto.
Eram sempre histórias de tradição oral, espelhando as limitações
dela por não saber ler nem escrever. Mas, quase sempre usava
expressões da língua portuguesa, que embelezavam ainda mais as
sessões noturnas de história história.
Assim, ia eu tendo os primeiros contatos com a escrita
oral, embalado
e fascinado pelas histórias da minha mãe. Essas sessões, tinham
como finalidade nos manter acordados enquanto o jantar ia sendo
preparado, prevendo o atraso de algumas horas para ser servido,
ultrapassando as vezes às 23:00 da noite.
Ninados, pela voz meiga da minha mãe, muitas
vezes acabávamos por adormecer sem jantar. Logo, a meio da noite,
levantávamos da cama e dirigíamos à mesa, na penumbra (luz turva
do candeeiro de petróleo) e comíamos a refeição.
Depois, dirigíamos para a cama e continuar o
sono tranquilamente. Pois, a ideia de dormir sem jantar não nos
agradava, porque o cabo-verdiano diz sempre que ninguém não pode
dormir de barriga vazia.
Durante a exposição das histórias da minha
mãe, conseguia notar através do seu semblante, as angustias,
tristeza e revolta de uma mãe, massacrada pelas intempéries da
vida, impostas pelo decurso desventurado de uma mulher desamparada.
Embora, fizesse de forte e tentar disfarçar os males da sua alma,
sempre entendia que ela sofria muito para manter os filhos. Todos os
dias, lutava no duro, em busca do pão de cada dia, “comendo o pão
que o diabo amassou”, para custear as despesas da casa sozinha. Era
o rosta da mulher cabo-verdiana, figura sofrível, abandonada à sua
própria sorte, vítima do egoismo desnaturado e saboreando dia após
dia a solidão, sua companheira fiel.
Lembro-me como hoje, que na minha casa não
havia materiais escritos. Havia apenas o saquinho de fazenda da minha
irmã mais velha, que tinha entrado na escola pela primeira vez, cujo
recheio era apenas um caderninho de dez folha, o mais barato de então
e o mais acessível para os desfavorecidos. Tinha também um lápis
de grafite e alguns pedaços de lápis de cores, ofertas de colegas
amigos, cujos pais conseguiam substituir-lhes os materiais
anualmente. Então, os que não tinham nada, recebiam os restos
daqueles mais abastados. Assim, nem no caderninho da minha irmã, eu
tinha acesso para ver os rabiscos que fazia na escola, porque, era
costume guradar bem os materiais dos que andavam na escola, para não
serem danificados pelos mais novos e inesperientes. Quando raiava o
dia, ainda bem cedo, por volta das 6:00 am, a minha mãe saía para o
trabalho e deixava quase sempre com a minha irmã mais velha cerca de
20$00, para o pequeno almoço. O valor era distribuido assim: 10$00
de pães (sendo cada pão 2$50), 5$00 de leite e 5$00 de açúcar.
Almoço? Era uma incógnita, talvez...
Hoje, compreendo que valeu a pena tanta luta,
sofrimento e determinação. Pois, sei dar valor a cada coisa desta
vida por insignificante que pareça e no meu léxico não existe a
expressão “desistir”, mas sim, esperança, esperança,
esperança...
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